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Desafios do comércio exterior brasileiro

A proposta de consolidação aduaneira do Projeto de Lei n. 508/2024


Atuar com o comércio exterior é desafiador por diversos motivos, mas o principal deles é a falta de harmonização de nossa legislação aduaneira. Por isso, a notícia sobre a consolidação legislativa do comércio exterior foi bem recebida e obteve o apoio de diversas entidades. Mas o caminho proposto já foi tentado e produziu resultados pífios, como a baixíssima participação brasileira no comércio mundial nas últimas décadas.


Dos países do Mercosul, o Brasil ocupa uma vergonhosa retaguarda em relação à codificação aduaneira. A Argentina promulgou seu código em 1981, o Paraguai em 2004 e o Uruguai em 2014.


Portanto, estamos muito atrasados e toda tentativa de sistematização da matéria aduaneira num corpo de normas organizado, harmônico e moderno precisa ser celebrada e apoiada.


No entanto, não é esse o caso do Projeto de Lei n. 508/2024 que pretende consolidar a legislação federal sobre o comércio exterior e dispor sobre os Impostos de Importação e Exportação.


Para facilitar a exposição e a compreensão da análise, os principais pontos serão abordados de em tópicos separados.

 

O abandono da legalidade pela legislação aduaneira


É preciso ressaltar que os nossos vizinhos realizaram as suas codificações mencionadas acima com a participação dos respectivos congressos nacionais via processo legislativo interno desses países.


O mesmo não ocorreu com a última grande reforma aduaneira operada pelo Brasil. O Decreto-Lei nº 37/1966, chamado erroneamente de "Código Aduaneiro" na época, foi produzido no âmbito da Reforma do Ministério da Fazenda realizada na década de 1960.


No entanto, decidiu-se que a reforma seria objeto de um tratamento parcial, optando-se pela realização de um projeto que abrangesse a legislação do imposto de importação e reorganização dos serviços aduaneiros, dando origem ao Decreto-Lei nº 37/1966. De modo resumido, não existiu tempo hábil para fazer a sistematização da matéria aduaneira e isso levou à sua complementação posterior.


Além desse grave problema de técnica legislativa, a comissão de reforma operou um inaceitável abandono da legalidade. A Comissão de Reforma visava a substituição de um sistema aduaneiro baseado na lei por um sistema flexível, baseado na autoridade do Poder Executivo federal em legislar via Decretos-Lei. Assim encerrando uma história de consolidações aduaneiras democráticas que vinha desde a época do Império, posto que os regulamentos aduaneiros de 1832, 1834, 1836, 1860, 1876 e a consolidação de 1885 foram realizados com a autorização do poder legislativo.


Agora, vários desses atos normativos produzidos de maneira viciada estão sendo cogitados como aptos a serem consolidados pelo projeto ora examinado (Decreto-Lei nº 37/1966; Decreto-Lei nº 491/1969; Decreto-Lei nº 1.248/1972; Decreto-Lei nº 1.455/1976; Decreto-Lei nº 356/1968; o Decreto-Lei nº 1.578/1977; Decreto-Lei nº 1.804/1980; o Decreto-Lei nº 2.120/1984; o Decreto-Lei nº 2.295/1986 e Decreto-Lei nº 2.472/1988).


O único caminho que respeita a constituição é o que passa pela revogação total da legislação aduaneira criada no século passado com vícios de legalidade. Obviamente que defendemos a sua não convalidação por meio de uma consolidação.

 

Incompatibilidade com compromissos internacionais


A política aduaneira que serviu de base para a reforma aduaneira operada no século passado deixou de existir há muitos anos, por diversos motivos.


O primeiro deles foi a reconquista da legalidade pela Constituição Federal de 1988, a qual limitou a atuação do Poder Executivo Federal (artigo 5º, inc. XLV, segunda parte, artigo 153, parágrafo §1º, artigo 177, § 4º e artigo 40, parágrafo único dos Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, por exemplo).


Além disso, essa legislação aduaneira do século passado foi criada sob um paradigma de que o sistema aduaneiro deveria servir como uma arma de manipulação direta e flexível na política aduaneira do país, calcada numa ideia de proteção industrial.


No entanto, o Brasil assumiu diversos compromissos internacionais em matéria aduaneira, os quais contém outros paradigmas, como o da facilitação comercial, por exemplo.


Pensar uma codificação aduaneira no século XXI significa aceitar, em primeiro lugar, que o estado atual do comércio internacional se pauta pela facilitação. Além disso, deve assumir que a aduana possui um novo papel no cenário global, passando de uma aduana controladora para uma aduana facilitadora do comércio, o que precisa ser realizado com segurança. Tudo isso precisa ser feito com uma articulação satisfatória entre as aduanas e os operadores comerciais privados.


A premissa é que a facilitação do comércio aumente a participação do país no comércio global por meio da simplificação de procedimentos, embora também possa acarretar em mais custos aos intervenientes devido maiores exigências de conformidade.


Assim, se percebe como é difícil compatibilizar esses compromissos internacionais com a legislação aduaneira vigente que foi criada num contexto histórico não democrático e de isolamento da economia nacional.


A ideia de consolidar essa legislação aduaneira representa o caminho mais difícil para uma possível adequação nacional a esses compromissos, pois sequer se cogitou que o Brasil já manifestou sua adesão ao Código Aduaneiro do Mercosul (Decisão nº 27/10 do Conselho do Mercado Comum), o qual sequer foi mencionado pelo Projeto de Lei n. 508/2024.


A sistematização da matéria aduaneira precisa ser realizada de maneira harmônica com as normas provenientes de compromissos internacionais que foram internalizadas.

 

O punitivismo autoritário da legislação aduaneira


Um dos pontos que mais chama a atenção no Projeto de Lei n. 508/2024 diz respeito à repressão das infrações aduaneiras.


O punitivismo da legislação aduaneira pode ser explicado pelo já mencionado abandono da legalidade em prol de uma defesa da autoridade do Poder Executivo Federal.


Por exemplo, a presunção de dano ao Erário previsto no Decreto-Lei n. 1.455/1976 é um resquício desse autoritarismo na medida em que pune com a grave infração de perdimento todas aquelas condutas que foram assim determinadas, sem qualquer preocupação com a proporcionalidade da sanção, o que é incompatível com o Acordo sobre a Facilitação do

Comércio, já internalizado e vigente.


Lembrando que a Constituição Federal de 1988 não prevê o dano ao Erário como requisito para a decretação do perdimento de bens, ou seja, não faz qualquer sentido consolidar o Decreto-Lei n. 1.455/1976 se o Brasil tem a intenção de se tornar compatível com o Acordo sobre a Facilitação do Comércio.


A simples transposição do sistema aduaneiro sancionador previsto na legislação anterior sem qualquer análise sobre a efetiva necessidade de manutenção das sanções também pode gerar muitos outros problemas.


Primeiro, a eleição das condutas que precisam ser sancionadas não pode ser realizada pela própria aduana, seja por estar encarregada de sua aplicação posterior, seja por conta da ausência de competência legal para tanto.


Segundo, o sistema aduaneiro vigente está calcado num paradigma ultrapassado, como já afirmado, e isso também impacta na escolha dos bens jurídicos que serão protegidos por essas mesmas sanções.


De modo muito resumido, as infrações aduaneiras vigentes não foram pensadas de uma maneira que protegessem bens jurídicos dignos de tal proteção. A proteção recai sobre a própria autoridade do Poder Executivo Federal ou sobre a arrecadação tributária, a qual não precisa, necessariamente, da proteção das sanções aduaneiras.


A aceitação do estado atual do comércio internacional também implica no reconhecimento de que existem garantias mínimas previstas em tratados internacionais que precisam ser respeitadas também em matéria aduaneira sancionatória, as quais são extensíveis a todos os intervenientes.


Há uma forte tendência para a formação de um sistema aduaneiro sancionador que respeite a legalidade, se utilize de um critério de imputação de responsabilidade subjetivo, seja pensado de que as sanções sejam proporcionais às condutas praticadas, entre outros.


Nada disso existe na legislação aduaneira vigente. Em termos gerais, muitas das condutas infracionais foram definidas pela aduana, a qual também regulamentou o processo aduaneiro sancionador.


Obviamente que isso não representa um paradigma moderno de atuação e viola o princípio da integridade das decisões sancionatórias (art. 15.5 do Protocolo ao ATEC e art. 6.3.4 do Acordo sobre a Facilitação Comercial da Organização Mundial do Comércio)[1].

 

Conclusões


O tão sonhado e defendido crescimento da participação do Brasil no comércio mundial certamente não passa pela convalidação da legislação aduaneira vigente. Ela foi pensada num contexto de fechamento comercial e protecionismo e produziu os resultados esperados para uma legislação protecionista e isolacionista: baixa participação brasileira no comércio internacional que não chega a míseros 2%.


Portanto, o Projeto de Lei n. 508/2024 é inoportuno e precisa ser rejeitado na medida em que consolida e convalida toda uma legislação aduaneira atrasada, autoritária e punitivista.


No entanto, o PL 508 chama a atenção para a nossa antiquada legislação aduaneira e a necessidade de uma codificação da matéria via processo legislativo. A produção de um bom código aduaneiro tem a possibilidade de gerar a segurança jurídica necessária para o tão sonhado crescimento econômico com um aumento de nossa inserção no comércio internacional.


Perderemos essa oportunidade novamente?



Referências:

[1] Conforme defendemos em: FAZOLO, Diogo Bianchi. As infrações aduaneiras à luz do Direito Aduaneiro Internacional. São Paulo: Caput Libris, 2024, p. 201.

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